A PAZ...

17/09/2010 11:49

Nesta sexta temos um texto de Jean-Yves Leloup. Não se assustem com o tamanho do texto. Imprimam, deixem para ler durante o final de semana, mas, de maneira alguma, deixem de ler este breve bate-papo. Em breves 4 páginas teremos contatos com conteúdos como:

“O Amor jamais se manifesta àquele que o pede, mas se revela sem cessar a quem o doa.”

“Unicamente quem ama, quem se torna amável e é capaz desse dom “gracioso” recebe o amor gratuitamente.”

“Ser nada a mais (e nada a menos) do que somos – estar em paz – pressupõe uma mente pacificada, em repouso, e é o segundo sentido da palavra shalom.”

“Quem sofre ou é infeliz é sempre o eu e nossa identificação com o que não somos realmente.”

Bem estas frases são só aperitivos! Então, convidamos a todos para degustarem o prato principal.

Um bom final de semana para todos.

 

A PAZ...

setembro 2006

Jean-Yves Leloup



    

     Paz, em hebraico, é Shalom, e, literalmente, Shalom quer dizer: “estar inteiro”, “estar em repouso”...  É então conveniente que perguntemos: o que nos impede de estarmos inteiros?  O que  nos impede de experimentarmos o repouso, isto é, de estarmos em paz?

     As respostas são múltiplas; destaco apenas as que me parecem essenciais;

-    O que nos impede de estarmos inteiros, de estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o medo.

-    O que nos permite estarmos inteiros, estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o amor.

     O contrário do amor, e portanto da realização do que somos, não é fundamentalmente o ódio, e sim o medo.

     Medo de quem?  Medo de que?

     Medo de amar, melhor dizendo, de se perder, pois amar antes de se encontrar é perder-se.

     Certamente, existe toda sorte de medo: do desconhecido, do sofrimento, do abandono, da morte...  Todos esses medos podem resumir-se num só: medo de ser “nada”.

      Este medo nos leva a esforços inimagináveis, para provarmos a nós mesmos e aos outros que somos alguma coisa e que “vale a pena” sermos amados, que o merecemos...  Ser amado seria, portanto, um direito do homem?

     Infelizmente, este é um segredo muito bem guardado: aquele que procura ou solicita o amor jamais o encontrará...  Só o encontramos no momento em que o damos...  Unicamente quem ama, quem se torna amável e é capaz desse dom “gracioso” recebe o amor gratuitamente.

    O Amor jamais se manifesta àquele que o pede, mas se revela sem cessar a quem o doa.  Aquele que compreendeu e viveu isto sente-se em paz.  E também inteiro, porque só o amor nos realiza (e é o cumprimento da lei).

     O medo nos “castra”, torna-nos enfermos e impede a livre circulação da vida em todos os nossos membros.  E no Amor não há “membros impuros”: “Tudo é puro para aquele que é puro”; é o Amor que purifica.

     Amar com todo o seu ser, este é o mandamento (mitzvah), ou, mais exatamente, o “exercício” que nos é proposto: “Amarás com todo o teu coração, com todo o teu espírito, com todas as tuas forças”; isto traz também uma esperança.

      Um dia amarei inteiramente, não somente com o meu corpo, minha cabeça ou meu coração,  mas “inteiramente”; um dia, se almejo isto sem perder a esperança, estarei em paz.  Pois é suficiente desejar amar, querer amar, mesmo que ainda não seja amar...  Bem sabemos que o inferno não está nos outros; o inferno é não amar, é não se amar inteiramente, até em nossa dificuldade e algumas vezes em nossa incapacidade de amar...

      Nesse caso, talvez seja bastante não mais querer, não mais ter medo deste medo sutil, menos grosseiro, que é o medo de não ser amado, o medo de não amar...  Aquele que perdeu o medo de ser “nada” não tem mais medo de tudo; paradoxalmente, é o medo de ser nada que nos impede de ser tudo.  Se aceitássemos, por um instante, este “nada” que somos, este “nada a mais e nada a menos” do que somos, então,  nesse mesmo momento, não haveria mais obstáculos à revelação e ao desdobramento do Ser que ama, em nós e através de nós.

     Se, supostamente, ser amado é um direito do homem, ser capaz de doar é uma realização, uma graça divina concedida ao homem; a alegria de participar da Dádiva e da Vida do Ser que faz “girar a Terra, o coração humano e as demais estrelas”, generosamente...

      Porém, não fosse pelo fato de nos “sentirmos mal”, como seria possível aceitarmos “ser nada” quando nos sentimos ser alguma coisa?  O termo “nada” pode parecer negativo; talvez fosse preciso dizer simplesmente “ser”, sem acrescentar qualquer palavra, para podermos pressentir que o que se soma ao “ser” é algo de “mental” e compreendermos melhor a palavra do Cristo, precedida pela de Buda (seis séculos antes): “O que é, é, o que não é, não é”.  Tudo o que é dito a mais vem do mental ou do “mau”, ou ainda, em algumas traduções, do “mentiroso”.

      Sentir-se em paz é estar num corpo relaxado, com o coração livre e a mente serena.  E conhecendo melhor, hoje, as funções coordenadoras do cérebro, é sem dúvida pelo mental que devemos começar.  Ser nada a mais (e nada a menos) do que somos – estar em paz – pressupõe uma mente pacificada, em repouso, e é o segundo sentido da palavra shalom.

     Por que não estamos em repouso?

     Não somente há o medo de ser “nada” (ser mais ou ser menos do que somos), mas existem as lembranças, com as quais nos identificamos e que tomamos por nosso verdadeiro ser.  O caminho para a paz é aquele que nos faz passar das nossas identidades provisórias, irrisórias, transitórias, para a nossa identidade essencial (eu sou o que eu sou).

     Os Padres do Deserto falavam de oito logismoï, ou pacotes de memórias, com os quais nos identificamos e que nos impedem de estar em paz.  São eles:

1.       Gastrimargia, ou a identificação com nossas fomes, sedes e apetites, o resultado de todas as nossas necessidades, que e somatizam, na maior parte do tempo, oralmente (bulimia, anorexia);

2.      Philarguria, ou o medo de nos faltar algo, que se manifesta pela acumulação de bens inúteis; identificamo-nos e buscamos a segurança, pelo que temos e pelo que possuímos;

3.      Pornéia, ou a identificação com a nossa vida pulsional, com o medo de nos faltar vitalidade e desejo;

4.      Orgé, ou a dominação do irascível e do emocional, a cólera de não ser reconhecido como “centro  do mundo”, “digno de reconhecimento e respeito”;

5.      Lupé, ou a tristeza de não sermos amados como gostaríamos de ser;

6.      Acedia, ou a tristeza de não sermos amados de forma alguma, o desespero diante da evidência de que nunca fomos e nunca seremos amados (a menos que cessemos de pedir e nos tornemos capazes de doar);

7.      Kenodoxia, ou a vaidade e a presunção que nos identificam com a imagem que fazemos de nós mesmos, independentemente do que somos na verdade; isto só acontece com angústia, e esta é proporcional à diferença que existe entre o que somos e o que pretendemos ser;

8.      Uperephania, sem dúvida, a patologia mais grave: trata-se de colocar nossa identidade ilusória como se fosse a única realidade, e tomarmos a nós mesmos por única referência e juizes do que é bom ou mau; considerar todas as coisas em relação ao prazer ou desprazer que elas nos proporcionam e fazer delas uma lei válida para todos.

     Aos oito logismoï, ou pensamentos, poderíamos acrescentar muitos outros, como o ciúme, a inveja...  e todas as projeções que nos impedem de ver e de aproveitar o que está no presente.  Não por acaso, mais tarde, os Padres do Deserto chamaram estes pensamentos ou expressões da mente, que constituem obstáculos à apreensão simples e pacífica do que existe e do que somos, de “demônios” (shatan, que, em hebraico, quer dizer: “obstáculo”).

      Em resumo, o principal obstáculo à paz, o maior dos demônios é a nossa própria mente, este reservatório de emoções passadas, que se derrama sem parar sobre o presente; este “pacote de memórias” que denominamos ego, ou eu.  Quem sofre ou é infeliz é sempre o eu e nossa identificação com o que não somos realmente.

     Que só o presente existe é um segredo bem guardado; o que era, não é mais; o que será, ainda não é; se vivermos eternamente em nossos arrependimentos e projetos, teremos que sofrer e passaremos ao largo do “segredo”... “Ora ao teu Pai que está aí, dentro do segredo”, na presença do que é presente.  São palavras do Evangelho e também palavras de cura...

      A morte não existe ainda, ela não é.  Só permanece este “Eu Sou”, que existe desde sempre e para sempre.  Não podemos ir para outro lugar, senão onde estamos; e onde nos encontramos aqui já estamos.  Por que procurar, em outra parte, a vida e a paz que nós somos, se a paz é nossa verdadeira natureza, não está por fazer?  Trata-se, primeiramente, de conferir menos importância àquilo que nos “impede” de estar em paz; depois, não lhe dar importância alguma, se quisermos; e isto significa aderir, instante após instante, ao que é, com um espírito silencioso, uma mente serena, ou melhor, não identificados com as memórias e com as emoções que essas memórias provocam.

     Lembrar-se de que nossa verdadeira natureza está em paz é uma forma universal de oração.  Essa rememoração de nosso ser verdadeiro encontra-se, efetivamente, na base das práticas de meditação de várias culturas ou religiões (dhikr – prática islâmica; japa – modalidade de ioga; hesicasmo – seita antiga de místicos cristãos orientais, etc.).

           Temos medo de que?  De perdermos a cabeça, perdermos a alma, de não  sermos o que nossas memórias nos dizem que somos, não sermos coisa alguma do que pensamos ser?  Perdem-se as ilusões, os pensamentos, e fica somente o medo de morrer.  Se eu paro de me identificar com o que deve morrer, permaneço já naquilo que sou desde sempre.

     Não pode haver outro artesão da paz que não seja aquele cujo corpo está relaxado, que tem o coração livre e a mente pacificada.  Mesmo o nosso desejo de paz pode tornar-se uma tensão, um nervosismo, um obstáculo à paz, uma obrigação, um dever que se somará à infelicidade e à inquietação do mundo.

     Afirmar que estamos em paz não é negar nossos medos, nossas memórias, nossos sofrimentos...  é colocá-los em seus devidos lugares, na corrente insensata e tranqüila da verdadeira Vida...

 

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