O REGISTRO DE UMA LIÇÃO
Na semana de aniversário da CACEF, Gregório presenteia- nos com “O registro de uma Lição”. Um convite a “tão falada reforma íntima”. E, sincero, revela-nos as nuances vivenciadas durante este processo.
Fala-nos de morte como transformação. Como a capacidade de nos desfazermos do que não queremos mais ser, para nos refazermos. Novos. Melhores. E vai além, esclarecendo-nos que é um processo continuo, difícil, por vezes, doloroso, porém, recompensador.
Boa reflexão!
Andréa
O REGISTRO DE UMA LIÇÃO
Vamos dar um salto. Não para o futuro, mas para o passado. Nos poucos momentos em que vivi um inferno interior. Poucos? Estaria mentindo se isso dissesse. Foram muitos.
E se brinco, é para diluir a dor que, até hoje, bate no peito, lembrando-me dos meus infortúnios. Sim, ainda hoje. E se faço questão de lembrar, é por que sei o quanto vale uma lição.
Meu desejo é que se perpasse pelos meus pensamentos, sem força e sem o êxito de toma-me novamente. Tarefa árdua manter-me afastado dos impulsos do mal, que se sobrepunham as minhas verdades.
Algo avassalador que nos toma e nos eleva, precipitando em queda das mais dolorosas. Que nos corta a alma e nos faz querer desistir do que temos de mais belo: o viver...
Saí de casa em desespero. Uma força estranha me movia. Algo indescritível que me fazia enjoar, gritar, estremecer. Uma mistura de emoções que me causava uma agonia arrebatadora.
Pensei: “De hoje não passa.” Queria livrar-me do incrédulo que pousava suas garras destruidoras em mim. Que me fazia desistir. Atitude que sempre desprezei.
Achava que tudo era possível de fazer, pensar e conseguir. Necessitaria apenas de vontade, ânimo, disciplina e pesquisa. Não basta o conhecer, tem que haver o aprofundamento e isso só nasce com a pesquisa.
Pesquisar é buscar. Ir atrás, incansavelmente, de perguntas e de suas respostas. Sim perguntas. Não há pesquisa sem a existência delas. E se elas existem, as respostas surgirão.
Inventadas, descobertas, aprimoradas, aprisionadas em mentes brilhantes que divulgam seu entender, do mais simples ao mais complexo, do que existe no mundo.
Do ar surge a ideia. Do ar vago que rodeia o ser, implicando em espaço a ser preenchido. Um mar de possibilidades começa a mover-se. A direção pouco importa é preciso deixa-lo seguir.
No decorrer de suas águas, captura movimentos sonoros, formas, luz, cor. Um mar de pensamentos. Ideias que vão se formando, se estruturando de acordo com o vento.
Este era o meu erro. Não preocupar-me com a direção. Acreditava que o importante era percorrer caminhos, sejam lá quais forem para chegar às perguntas e respostas que queria.
Neste dia, aprenderia que não se caminha sem ermo, pois isso pode levar a uma pobre morte de sua alma. Explicar-me-ei. A morte soa como fim, mas não, é somente transformação, é refazer-se. Se assim permite.
Se se faz pobre, fraca de grandes atitudes transformadoras, mantem o indivíduo onde sempre esteve. Se se faz completa, transcende-o, possibilitando passar para uma nova e promissora fase.
Estava prestes a morrer pobremente. De sobressalto, fui pego por um jovem que andava na rua. Lado a lado, parecia perseguir-me. Estranhei. No primeiro momento, apressei os passos, mas os passos alheios me alcançavam.
Então, corri. E cada vez ia correndo mais e mais, até embrenhar-me na escuridão, sem saber que rumo havia tomado. Cansado parei. Encostei-me em um murro e lá fiquei. Ofegante. Sem forças para mais nada.
Ao perceber o jovem, tremi. Energicamente, pegou-me pelo braço, conduzindo-me, sem resistência, a um casario antigo, no final da rua. Empurrou para dentro e fechou a porta.
Sentei-me no chão. Precisava descansar. Ouvi barulhos de crianças que brincavam felizes ao fundo e acalmei-me. Pensei: Não me farão mal na frente dos pequenos.
Perpassei os olhos e percebi a pobreza que me rodeava. Moveis simples compunham aquele imenso lugar. Teto e assoalho de madeiras ansiavam por reparos, por um instante, tive medo de afundar ou ser soterrado.
O jovem que havia se retirado, sem minha observação, retornava, agora, com um copo de água. Estará envenenado? Pensei, enquanto o fresco e reparador líquido descia-me goela abaixo.
Não desfaleci. Abismado fui levantado do chão e pousado em uma velha cadeira. Olho no olho, esboçou-me um singelo sorriso. O que seria? Não esperei a pergunta, pois lágrimas o acompanharam em seguida. Nada compreendi.
Sem dizer uma única palavra, enxugou os olhos, que me direcionaram a uma escada, no fim do corredor vazio. Agora, usando a cabeça, me indicou acompanhá-lo na subida.
Sem forças, obedeci. Curioso, percorri o ambiente. Velhas fotos formavam uma escada na parede. Rostos, perfis, grupos... Seriam membros de uma família?
Um chamou-me atenção. Não saberia dizer-lhes por que. Era a foto comum de um casal. Uma ao lado do outro, roupas formais, num ambiente frio. Ou seria a falta de cor. Odiava os retratos. Retirava de nós o mais belo: as cores que nos diferenciavam, fazendo-nos únicos.
Ao chegarmos ao fim da escada, conduziu-me a um quarto. Encontrava-se na penumbra, uma velha senhora enrolada em seus lençóis. Parecia moribunda. Apavorei-me.
Um odor nauseante tomava conta do pequeno cômodo. Apenas uma escrivaninha e um velho armário uniam-se a cama para completá-lo. Contemplei aquela imagem tão distante de mim e desejei fugir.
Mas minhas pernas não me obedeciam. A senhora empalidecida, com dificuldade, estendeu-me a mão emagrecida que portava de um delicado papel.
Sem conter minha curiosidade, aproximei-me, tomando o que me oferecia. A letra ilegível compunham frases no papel amarelado. Com dificuldade, fui decifrando uma a uma.
E pasmado, derrubei-me na cama em prantos. Tratava-se de uma antiga letrista. Fazia canções populares que arrebatavam do coração emoção, encantamento e dor.
Causou-me tristeza profunda ao vê-la naquele estado. Cortava-me o coração o perceber da degradação do corpo, consumido pela alma que se desalinha por completo do seu objetivo inicial.
Hoje, posso falar-lhes sobre isso com conhecimento de causa. Outrora, diria, igualmente a muitos outros, que não se passava dos acúmulos da bebida e dos devaneios, aos quais toda alma livre e sensível de artista se deparava.
Lembrei-me de tal fato, porque hoje reconheço meus desalinhos e a dificuldade de evitá-los. Foram-me necessários anos após anos de reforma interna profunda e dolorosa.
Não negarei. É dolorosa. Porque não se abre mão do que se pensa ser, sem desapego, sem desconstrução, sem morte. É um processo individual, intransferível que nos exige coragem, disciplina, determinação, respeito e um profundo amor por nós mesmos.
Mas acalento-os, registrando que alcançar o novo ser que nos tornamos, por mais simples que seja, é um dos momentos mais gratificantes que já vivenciei. Um ser novo que se faz e se refaz várias vezes, até estar pronto para novos objetivos.
Não os enganarei. O caminho é ainda mais longo do que parece. E alcançar os degraus um de cada vez, nos fortalece e encoraja para a longa subida. Portanto, antes de despedir-me, convido-os a tão falada reforma íntima.
O que parece assustador é nada mais nada menos do que um encontro amoroso consigo mesmo. Ser-se-á amoroso ou devastador, depende de cada um de nós, mas garanto-lhes, sempre, não importa o tempo, será restaurador e gratificante.
Olhem-se com cuidado e carinho, com respeito e compreensão e não desistam jamais. Se hoje não for possível aprofundar-se o tanto quanto queria, acalme-se, o amanhã ressurgirá e nova oportunidade terá para fazê-lo.
Quanto ao bilhete. Trazia a estrofe de uma canção que ressoou no peito dos que a ouviram na época. Ensinava a despertar das profundezas obscuras e buscar a luz.
Trouxe esta estória para marcar um caminho pelo avesso. Que me trouxe a razão. Comtemplei aquele momento como uma grande lição. Quem sabe um dia, ela permita-me contar todos os detalhes. Por hoje liberou-me só um pedaço.
Quanto a minha parte deste momento, verbalizo em alto em bom som:
“-Desacreditado do futuro devido a morte da mulher amada. Abracei-me a amargura, que convidou o desespero. Já não olhava a vida de frente encarava- a pelas entrelinhas.”
Uma dor dilacerante tocava-me o peito e duvidei da existência do criador. Se ele só dor me deu, porque dedicar-lhe minha vida. E se isto é o que nos ligava me desfaria dela.
Não só cambaleava pela corrida, mas também pelos entorpecentes que usava. Não são, desfaleci sobre os braços do jovem rapaz, entregando-me, sem resistência.
Desejava morrer e morri. Aquele encontro transformou-me. Ao reencontrar a velha amiga. Ao compartilhar das consequências dos seus desatinos. Ao ser presenteado pela doce e preciosa canção.
Voltei a mim. Não do mesmo jeito. Diferente. Transformado. Melhor. Naquele dia, retornei ao lar que havia abandonado, despi-me do sofrimento que me fizera abandonar até mesmo os filhinhos. Renasci.
Voltei muitas vezes para visitá-la. Dei-lhe o conforto que podia, para alimentar de amor a sua alma, até que ela partiu. Sua lição ficou registrada em mim e ao vê-la, fortaleço-me e agradeço a presença do Pai, que mesmo renegado, não se esqueceu de mim e a enviou.
Deixo-os para em breve voltar.
Gregório
13.07.13