SEJAMOS PAULOS

02/09/2013 05:41

Este é o convite que Gregório nos faz, esta semana, no Momento de Luz: “Que sejamos Paulos. Homens que acreditam na vida, que transformam a si mesmos e ao mundo em que vivem”.

Que encaremos nossos erros como sementes, que ao serem cuidadas, geram frutos de conhecimento, favorecendo nossa transformação em seres melhores.

Boa reflexão!

Andréa

 

 

SEJAMOS PAULOS

 

Há alguns anos atrás, conheci Paulo. Um espírito formidável, que muito me ensinou. Quando fomos apresentados por Samuel, ficamos horas a palestrar. Simplesmente, esquecemo-nos do tempo. Ambos tínhamos muito que contar.

Viemos do mesmo tempo e éramos conterrâneos. Embora jamais o tivesse visto antes, conhecia sua bela caminhada na existência terrestre. Acompanhei seus escritos e aprendi admirar sua desenvoltura como escritor.

Falava sobre os esportes. Percorria todas as cidades fossem capitais ou pequenas cidadezinhas do interior em busca de novos talentos esportivos. Na época, o futebol ainda não existia no formato que existe hoje, mas já colecionava admiradores.

Praticado pela mínima porção de gente, não envolvia multidões. Admirados, neste tempo, eram a corrida e a cavalgada. Reuniam uma multidão para assistir e torcer.

Lembro-me de ter acompanhado algumas corridas. Homens pegando folego e explodindo em direção à linha de chegada. Mas confesso que a melhor parte era acompanhar a locução do apresentador e o delírio das moçoilas.

Voz postada, criava mil e um artifícios para prender a atenção. Falava-nos sobre a corrida, o tempo, as fitas dos cabelos das donzelas, os sorrisos das matriarcas, os chapéus dos poderosos... e, finalmente, sobre o vencedor.

Certa vez, fiquei a desejar conhecer a linda dama de fita azul que ele descrevia. “- A bela senhorita da qual a fita azul do cabelo baila com o vento formado pelos grandes corredores de hoje. Seu delicado rosto serve de moldura para um iluminado sorriso que banha de luz o evento de hoje”.

Ah! Solteiro, passei horas a me esticar, tentando encontrá-la. E retornei para casa, decepcionado por não ter visto nem ela e nem o fim da corrida. Joguei-me no sofá e adormeci, tentando imaginar outro fim para o evento daquela tarde.

Na minha versão, sentado ao seu lado, via o mais rápido corredor atravessar a linha de chegada. E diante do resultado desejado, recebia um singelo beijo na face, presente inesquecível da mulher amada.

Despertei de manhãzinha ao chamado impaciente de meu pai, que desaprovava tal comportamento. – Lugar de dormir é no quarto. Nem mesmo meu pai, na pequena e simples casa que morávamos quando criança, admitia tal hábito.

Meu avô considerava a sala, um local sagrado, onde a família se reúne para palestrar e tomar decisões importantes. Não admitia que nada, além disso, ocorresse naquele lugar, que deveria estar sempre em ordem.

Estas foram uma das histórias que compartilhamos. Lembranças de um passado admirável e saudosista. Engraçado como rimos mais tarde dos desesperos que nos acontecem. Tudo nos parece mais leve, sem tanta importância. A isso chamo maturidade.

Paulo estava lá naquela tarde e sonhara o mesmo sonho, com a mesma linda dama de fita azul nos cabelos. Rimos juntos. Parecia, agora, tão ilógico. Sofremos da mesma dor, sem ao menos conhecê-la.

Assim, ocorrem-nos outros eventos dolorosos. Envolve-nos com o maior sentido e nos desespera, nos descabela, faz-nos sofrer. Para depois, mostrar-nos o quanto tolos fomos e quanto tempo nós perdemos, por tão imbecil fragilidade.

Enquanto ríamos e avaliávamos estas dores fictícias, Paulo lembrou-se de uma dor real. Seu sorriso deixou o rosto, que empalidecera. E de seus olhos brotaram lágrimas da verdadeira dor.

Guardei também o meu sorriso. E, tocando-lhe o ombro, coloquei-me a disposição para ouvi-lo. Tímido, tentou esboçar um ar mais tranquilo e baixando a cabeça, disse baixinho: - Não fui o que você acha que fui.

E corajoso, continuou:

- Percorria as pequenas cidades a procura de homens fortes e hábeis para trabalho escravo nas grandes cidades. Recrutava-os, fortalecendo- lhes o sonho de uma vida melhor e os empurrava para uma vida indigna.

- A escravatura já não era mais aceita e os senhores de escravos temiam não ter mais funcionários para suas lavouras. Então, certa manhã, um grande fazendeiro fez-me a proposta indecorosa.

- No início, pensei em não aceitar, mas era uma proposta financeira irrecusável. Dar-me-ia tudo o que sempre esperava ter: posses, poder, prestigio. Assim, poderia construir o estádio de esportes que tanto sonhara.

- Preço muito alto para construir um sonho. Pena só ter descoberto muito tempo depois. A cada dois atletas descobertos, eu aliciava dezenas de escravos.

- Enganava-os, dizendo que não tinham se saído bem nos testes e os encaminhava para o trabalho, afim que conseguissem comer e pernoitar até terem a passagem de volta para as suas cidades de origem.

- Tinham o mínimo para sobreviver e acarretavam dívida para toda uma vida. Jamais conseguindo retornar para suas famílias, tornando-se escravos até o fim de suas vidas.

Olhava-o abismado! Porém, não me atrevi a julgá-lo. Simplesmente permaneci ouvindo.

- Sabe qual é a ironia destes fatos. Vim, naquela vida, contribuir com o progresso. Comprometi-me a auxiliar espíritos a encontrarem seus talentos, incentivados a utilizá-los em benefício de si mesmos e do próximo.

-Mas em pouco tempo minha alegria se transformou em dor. Em uma destas viagens para cassar talentos e escravos, conheci Dora.  Uma linda dançarina de balé, recém-chegada da Europa.

-Trazia na bagagem os terrores causados pelo pré-conceito humano. Veio fugida, pois embora sua dança fosse respeitada, havia sido enganada por um cassa talentos que a jogou numa casa de prostituição.

- Perdeu a juventude e a dignidade. Retornava, agora, a sua terra como uma indigente. Solitária, entristecida fora lançada num navio por um antigo amante que tentara protegê-la da censura da sociedade.

- Residia num abrigo para senhoras, trabalhava como copeira em troca de sua sobrevivência. Aos sábados, caminhava até o asilo para cuidar dos idosos, retornando a pé com grande balaio com água. Este era o seu salário.

- Ajudei-a certa vez, na esquina onde eu estava a trabalhar. Braços delicados sustentavam o peso com muita dificuldade, quase a levando ao chão. Ao avistar seu olhar fui enfeitiçado.

- Tomei o balaio de suas mãos e a acompanhei até o abrigo. Ao chegarmos à porta, tomou-o de meus braços, agradeceu e entrou, deixando-me seu sorriso.

- Depois deste dia, ia esperá-la na esquina todos os sábados. Levava-lhe presentes: flores, frutas, lenços de seda. Quando me contou sua história, senti-me culpado.

- Vislumbrei todo mal que fizera a jovens homens e mulheres. Não tive coragem de lhe revelar o que fazia. Chorei nos seus braços, sem nada lhe explicar e, ao fim de um mês, resolvi mudar de vida.

- Mudei-me para a cidade onde ela morava. Fui até o abrigo e pedi sua mão em casamento. Busquei os jornais da redondeza e me ofereci como escritor ou topografista, função a qual havia renegado.

- Depois da vida arrumada, pensei que o sossego me alcançaria, mas a culpa do passado causava-me terríveis dores. Pesadelos me ocorriam todas as noites. Acordava suado, perseguido pelos que havia enganado.

- Então, percebi que não se pode simplesmente apagar o passado era preciso reconstruí-lo. O que faria? Buscava incessantemente a resposta. Já não dormia ou comia.

-Sentia-me perseguido. Temia sai de casa. Já estava quase a perder o emprego. Quando Dora colocou-me no colo. Acolheu minha culpa e me incentivou ao novo.

- Buscamos, juntos, a orientação do pároco, que abolicionista me inscreveu no grupo político que participava. Não sem antes me dizer:

-Meu filho, prender-nos a culpa, impede-nos de agir, crescer e florescer. Fazei como o apóstolo Paulo que transformou o erro em combustível e partiu para uma nova luta. Perdoar-nos é necessário para que seja possível a transformação e a construção de um novo eu.

- E assim vivi o resto dos meus dias. A construir um novo eu.

Paulo morreu, lutando por uma vida mais digna para todos os homens. Não se a sujeitou ao erro, construiu um novo futuro, diferente do passado, que não era mais compatível ao homem que se tornara no presente. Seu nome era José, passou-se a chamar Paulo ao ingressar no grupo político, ao qual se filiara, para lutar pela dignidade humana.

Que sejamos Paulos. Homens que acreditam na vida, que transformam a si mesmos e ao mundo em que vivem.

Deixo-os para em breve voltar.

Abraço afetuoso!

Gregório

01.09.13

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