VIVÊNCIAS MEDIÚNICAS (126)
Geralmente só após longos anos é que temos o discernimento para a escolha consciente do que reter e do que simplesmente “deletar”, de tudo que apreendemos em nossa vida.
Não nos ensinaram a cuidar da nossa mente, a observar os nossos pensamentos sem uma identificação absoluta com eles, a avaliar como disparam as nossas emoções e cuidar das mesmas, a lidar com nossos medos.
Neste contexto, convidamos todos para a leitura do texto de Jean Yves Leloup, que nos traz perguntas.
E o que é sabedoria, se não a quantidade de pergunta que somos capazes de fazer.
Perguntemos.
.jpg)
VIVÊNCIAS MEDIÚNICAS (126)
Refletindo sobre a causa dos conflitos contemporâneos, a violência e o egoísmo que geram sofrimento, observo como uma das causas mais importantes à ausência de paz, da paz interior que a grande maioria de nós aspira a ter e a ser.
Encarnados e desencarnados procuram o bem-estar, momentos de quietude tranquilizadora e harmônica até a plenitude do bem-ser. Essa procura é um trabalho a ser percorrido, com caminhos múltiplos e variantes.
Até aí, a grande maioria concorda, contudo a ética moral das pessoas e povos difere muito, e infelizmente os meios para atingir determinado propósito, supostamente de ética elevada, desqualificam o objetivo.
Mudamos os cenários e dizemos que “os tempos são outros”, e a humanidade caminha partilhando com muitos dos anseios e medos do homem antigo.
No conforto proporcionado pelos avanços da ciência e tecnologia na civilização moderna teríamos uma maior liberação de algumas tarefas externas e extenuantes, e com isto mais tempo para pensar, meditar, refletir. Exercitar o “homem, conhece a ti mesmo!”
Nos sistemas oficiais de ensino não somos estimulados a aprender sobre nós mesmos, a saber além do funcionamento normal do corpo. Estudamos nas escolas que uma alimentação saudável e que exercícios regulares melhoram o nosso corpo físico desde os primeiros anos. Somos bombardeados por milhares de informações sobre o mundo externo, concreto. Algumas delas de aplicação duvidosa, pois o conhecimento pressupõe um porque e para que.
Geralmente só após longos anos é que o discernimento chega para a escolha consciente do que reter e do que simplesmente “deletar”.
Não nos ensinaram a cuidar da nossa mente, a observar os nossos pensamentos sem uma identificação absoluta com eles, a avaliar como disparam as nossas emoções e cuidar das mesmas, a lidar com nossos medos.
Separada a religiosidade da vida material como se fossem de diferentes domínios, o homem esquece que é criação do Divino em processo de evolução, e que sua realização e crescimento, nascimento, vida, desencarne e encarne, ocorrem dia-a-dia. No cotidiano de um encarnado ou desencarnado habitam os mesmos processos mentais, pensamentos, emoções e aflições. E todos nós queremos Paz, Amor e Felicidade, mas não costumamos estudar com afinco sobre estes temas, que permanecem pouco explorados ou com significados ignorados.
Não estamos acostumados olhar a Paz, um “estado de espírito”, como um objeto de estudo, tão importante quanto as operações matemáticas básicas e as ciências elementares.
Partilho hoje com vocês um texto de Jean Yves Leloup que alargou minha ignorância.
A Paz...
Paz, em hebraico, é Shalom, e, literalmente, Shalom quer dizer: “estar inteiro”, “estar em repouso”...
É então conveniente que perguntemos: o que nos impede de estarmos inteiros?
O que nos impede de experimentarmos o repouso, isto é, de estarmos em paz?
As respostas são múltiplas; destaco apenas as que me parecem essenciais;
- O que nos impede de estarmos inteiros, de estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o medo.
- O que nos permite estarmos inteiros, estarmos inteiramente presentes na integridade do que somos, é o amor.
O contrário do amor, e portanto da realização do que somos, não é fundamentalmente o ódio, e sim o medo.
Medo de quem? Medo de que?
Medo de amar, melhor dizendo, de se perder, pois amar antes de se encontrar é perder-se.
Certamente, existe toda sorte de medo: do desconhecido, do sofrimento, do abandono, da morte... Todos esses medos podem resumir-se num só: medo de ser “nada”.
Este medo nos leva a esforços inimagináveis, para provarmos a nós mesmos e aos outros que somos alguma coisa e que “vale a pena” sermos amados, que o merecemos... Ser amado seria, portanto, um direito do homem?
Infelizmente, este é um segredo muito bem guardado: aquele que procura ou solicita o amor jamais o encontrará... Só o encontramos no momento em que o damos... Unicamente quem ama, quem se torna amável e é capaz desse dom “gracioso” recebe o amor gratuitamente.
O Amor jamais se manifesta àquele que o pede, mas se revela sem cessar a quem o doa. Aquele que compreendeu e viveu isto sente-se em paz. E também inteiro, porque só o amor nos realiza (e é o cumprimento da lei).
O medo nos “castra”, torna-nos enfermos e impede a livre circulação da vida em todos os nossos membros. E no Amor não há “membros impuros”: “Tudo é puro para aquele que é puro”; é o Amor que purifica.
Amar com todo o seu ser, este é o mandamento (mitzvah), ou, mais exatamente, o “exercício” que nos é proposto: “Amarás com todo o teu coração, com todo o teu espírito, com todas as tuas forças”; isto traz também uma esperança.
Um dia amarei inteiramente, não somente com o meu corpo, minha cabeça ou meu coração, mas “inteiramente”; um dia, se almejo isto sem perder a esperança, estarei em paz. Pois é suficiente desejar amar, querer amar, mesmo que ainda não seja amar... Bem sabemos que o inferno não está nos outros; o inferno é não amar, é não se amar inteiramente, até em nossa dificuldade e algumas vezes em nossa incapacidade de amar...
Nesse caso, talvez seja bastante não mais querer, não mais ter medo deste medo sutil, menos grosseiro, que é o medo de não ser amado, o medo de não amar... Aquele que perdeu o medo de ser “nada” não tem mais medo de tudo; paradoxalmente, é o medo de ser nada que nos impede de ser tudo.
Se aceitássemos, por um instante, este “nada” que somos, este “nada a mais e nada a menos” do que somos, então, nesse mesmo momento, não haveria mais obstáculos à revelação e ao desdobramento do Ser que ama, em nós e através de nós.
Se, supostamente, ser amado é um direito do homem, ser capaz de doar é uma realização, uma graça divina concedida ao homem; a alegria de participar da Dádiva e da Vida do Ser que faz “girar a Terra, o coração humano e as demais estrelas”, generosamente...
Porém, não fosse pelo fato de nos “sentirmos mal”, como seria possível aceitarmos “ser nada” quando nos sentimos ser alguma coisa?
O termo “nada” pode parecer negativo; talvez fosse preciso dizer simplesmente “ser”, sem acrescentar qualquer palavra, para podermos pressentir que o que se soma ao “ser” é algo de “mental” e compreendermos melhor a palavra do Cristo, precedida pela de Buda (seis séculos antes): “O que é, é, o que não é, não é”. Tudo o que é dito a mais vem do mental ou do “mau”, ou ainda, em algumas traduções, do “mentiroso”.
Sentir-se em paz é estar num corpo relaxado, com o coração livre e a mente serena. E conhecendo melhor, hoje, as funções coordenadoras do cérebro, é sem dúvida pelo mental que devemos começar.
Ser nada a mais (e nada a menos) do que somos – estar em paz – pressupõe uma mente pacificada, em repouso, e é o segundo sentido da palavra shalom.
Por que não estamos em repouso?
Não somente há o medo de ser “nada” (ser mais ou ser menos do que somos), mas existem as lembranças, com as quais nos identificamos e que tomamos por nosso verdadeiro ser.
O caminho para a paz é aquele que nos faz passar das nossas identidades provisórias, irrisórias, transitórias, para a nossa identidade essencial (eu sou o que eu sou).
Os Padres do Deserto falavam de oito logismoï, ou pacotes de memórias, com os quais nos identificamos e que nos impedem de estar em paz. São eles:
1. Gastrimargia, ou a identificação com nossas fomes, sedes e apetites, o resultado de todas as nossas necessidades, que e somatizam, na maior parte do tempo, oralmente (bulimia, anorexia);
2. Philarguria, ou o medo de nos faltar algo, que se manifesta pela acumulação de bens inúteis; identificamo-nos e buscamos a segurança, pelo que temos e pelo que possuímos;
3. Pornéia, ou a identificação com a nossa vida pulsional, com o medo de nos faltar vitalidade e desejo;
4. Orgé, ou a dominação do irascível e do emocional, a cólera de não ser reconhecido como “centro do mundo”, “digno de reconhecimento e respeito”;
5. Lupé, ou a tristeza de não sermos amados como gostaríamos de ser;
6. Acedia, ou a tristeza de não sermos amados de forma alguma, o desespero diante da evidência de que nunca fomos e nunca seremos amados (a menos que cessemos de pedir e nos tornemos capazes de doar);
7. Kenodoxia, ou a vaidade e a presunção que nos identificam com a imagem que fazemos de nós mesmos, independentemente do que somos na verdade; isto só acontece com angústia, e esta é proporcional à diferença que existe entre o que somos e o que pretendemos ser;
8.Uperephania, sem dúvida, a patologia mais grave: trata-se de colocar nossa identidade ilusória como se fosse a única realidade, e tomarmos a nós mesmos por única referência e juizes do que é bom ou mau; considerar todas as coisas em relação ao prazer ou desprazer que elas nos proporcionam e fazer delas uma lei válida para todos.
Aos oito logismoï, ou pensamentos, poderíamos acrescentar muitos outros, como o ciúme, a inveja... e todas as projeções que nos impedem de ver e de aproveitar o que está no presente.
Não por acaso, mais tarde, os Padres do Deserto chamaram estes pensamentos ou expressões da mente, que constituem obstáculos à apreensão simples e pacífica do que existe e do que somos, de “demônios” (shatan, que, em hebraico, quer dizer: “obstáculo”).
Em resumo, o principal obstáculo à paz, o maior dos demônios é a nossa própria mente, este reservatório de emoções passadas, que se derrama sem parar sobre o presente; este “pacote de memórias” que denominamos ego, ou eu.
Quem sofre ou é infeliz é sempre o eu e nossa identificação com o que não somos realmente.
Que só o presente existe é um segredo bem guardado; o que era, não é mais; o que será, ainda não é; se vivermos eternamente em nossos arrependimentos e projetos, teremos que sofrer e passaremos ao largo do “segredo”... “Ora ao teu Pai que está aí, dentro do segredo”, na presença do que é presente. São palavras do Evangelho e também palavras de cura...
A morte não existe ainda, ela não é. Só permanece este “Eu Sou”, que existe desde sempre e para sempre. Não podemos ir para outro lugar, senão onde estamos; e onde nos encontramos aqui já estamos. Por que procurar, em outra parte, a vida e a paz que nós somos, se a paz é nossa verdadeira natureza, não está por fazer? Trata-se, primeiramente, de conferir menos importância àquilo que nos “impede” de estar em paz; depois, não lhe dar importância alguma, se quisermos; e isto significa aderir, instante após instante, ao que é, com um espírito silencioso, uma mente serena, ou melhor, não identificados com as memórias e com as emoções que essas memórias provocam.
Lembrar-se de que nossa verdadeira natureza está em paz é uma forma universal de oração. Essa rememoração de nosso ser verdadeiro encontra-se, efetivamente, na base das práticas de meditação de várias culturas ou religiões (dhikr – prática islâmica; japa – modalidade de ioga; hesicasmo – seita antiga de místicos cristãos orientais, etc.).
Temos medo de que?
De perdermos a cabeça, perdermos a alma, de não sermos o que nossas memórias nos dizem que somos, não sermos coisa alguma do que pensamos ser?
Perdem-se as ilusões, os pensamentos, e fica somente o medo de morrer.
Se eu paro de me identificar com o que deve morrer, permaneço já naquilo que sou desde sempre.
Não pode haver outro artesão da paz que não seja aquele cujo corpo está relaxado, que tem o coração livre e a mente pacificada. Mesmo o nosso desejo de paz pode tornar-se uma tensão, um nervosismo, um obstáculo à paz, uma obrigação, um dever que se somará à infelicidade e à inquietação do mundo.
Afirmar que estamos em paz não é negar nossos medos, nossas memórias, nossos sofrimentos... é colocá-los em seus devidos lugares, na corrente insensata e tranqüila da verdadeira Vida...”
https://www.jeanyvesleloup.com/br/texte.php?type_txt=1&ref_txt=99
Muita Paz para todos nós,
Francesca Freitas
24-04-2013
